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Jesco von Puttkamer
Um legado de 130 mil imagens
Considerado um dos percussores da antropologia visual no Brasil (Mattos e Silva, 2005), Wolfgang Jesco von Puttkamer dedicou grande parte da sua vida à produção de um dos maiores acervos audiovisuais existentes sobre os povos indígenas brasileiros.
Jesco nasceu em 1919, em Niterói (RJ), filho de uma brasileira e de um barão alemão. Realizou seus estudos primários na Suíça e voltou em 1934 para o Brasil, em São João del Rei (MG), onde licenciou-se em ciências naturais. Durante a preparação de sua tese de doutorado em química, retornou com a família para reivindicar uma herança na Alemanha. Em 1942, quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, foi levado com seu irmão para um campo de concentração, onde permaneceu por mais de dois anos. Seu irmão nunca foi encontrado. Com o fim da guerra, Jesco trabalhou como fotógrafo oficial do governo da Bavária, documentando os campos de deslocados de guerra para as Nações Unidas e o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.
Em 1947 retornou com sua família ao Brasil, decidido a realizar um sonho de infância: viver entre os índios brasileiros. Já com certa experiência em fotografia documental, nos anos de 1960 Puttkamer começou a visitar as aldeias indígenas, acompanhando os irmãos Villas Bôas como fotógrafo em suas expedições ao Xingu. Jesco os seguiu por oito anos, o que lhe rendeu diversos filmes de “primeiros contatos” para a BBC de Londres, bem como artigos para a National Geographic e outras publicações internacionais. No documentário Bubula, o cara vermelha (1999), Jesco narra sua motivação para permanecer entre os indígenas:
Recebi o convite dos irmãos Villas Bôas para trabalhar no Xingu, gostei muito dessa vida no mato – uma vida livre, com esses povos livres, longe da opressão da civilização. Resolvi ficar lá, aceitando o convite sem gratificação nenhuma, somente comida, para viver com eles no mundo dos índios: uma vida muito interessante e fascinante. Achei que estava documentando uma coisa inédita e depois me fascinei tanto e reconheci que não era apenas necessário documentar esses povos não atingidos por nossa civilização destruidora, mas com brio, orgulho e beleza rara senti uma grande necessidade de documentá-los para a posterioridade.
Seu entusiasmo por povos intocados o levou a participar das frentes de atração dos índios Txukahamãe, Txicão, Suruí, Cinta-Larga, Marúbu, Kámpa, Kaxináwa, Waimiri-Atroarí, Yanomami, Hixkaryana, Uru-eu-wau-wau, entre outros. Segundo seu colega da National Geographic, Loren McIntyre:
“A obsessão de Jesco em espiar o Éden indígena se tornara um vício, e ele passou a procurar, uma após a outra, tribos ainda não contatadas, a fim de testemunhar a vida em seus primórdios. Levando consigo canetas, cadernos, fitas e filmes, ele chegava antes de missionários e antropólogos, antes dos tratores que arrastavam tanto as raízes quanto a inocência da terra. (in Puttkamer, 2005:14).
Além de acompanhar os Villas Bôas, Puttkamer também seguiu o sertanista Francisco “Chico” Meirelles na preparação dos povos indígenas para a expansão da fronteira oeste, em especial os Suruí Paiter. Junto aos presentes que carregava para conquistar a confiança dos indíos nessas frentes de atração, Jesco levava consigo caixas de isopor com lonas amarelas cheias de equipamentos fotográficos. Enquanto não era autorizado a acercar-se dos indíos, registrava esses primeiros contatos ainda de dentro do avião ou através dos buracos que fazia nas barracas das expedições.
Produzido ao longo de 40 anos, Jesco von Puttkamer deixou um enorme acervo de 130 mil fotografias, sobre 60 comunidades indígenas diferentes. Além disso, há cerca de 80 horas de sons gravados, 8 filmes montados e mais de 180 diários de campos.
Publicou em vida o livro Cunhatãs e curumins (Ed. UCG, 1986), com cerca de 200 retratos preto e branco de crianças Suyá, Karajá, Kamayurá e Suruí Paiter, entre outras, com descrições de seus adornos e artefatos e relatos de mitologias referentes à infância indígena.
A Editora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás publicou dois livros do acervo de Jesco após seu falecimento. Em 2000, com o apoio da Fundação Assis Chateaubriand, foi lançado Brasília sob o olhar de Jesco, com centenas de fotos que mostram desde o espaço geográfico, os criadores e construtores da cidade, até sua inauguração.
Em 2005 foi publicado Os últimos dias do Éden, editado por Roberto Linsker (Ed. Terra Virgem). O livro apresenta a documentação feita por Puttkamer das frentes de contato com os grupos Txicão, Suruí Paiter e Uru-Eu-Wau-Wau, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, respectivamente. Além das fotografias, o livro ainda é composto por histórias registradas por, de acordo com Linsker, “quem estava lá, viu e sentiu” (Puttkamer, 2005:11). Separado em três seções, as fotografias são em grande parte documentais, construindo uma narrativa sobre o impacto do contato nessas etnias pelos brancos e seus artefatos.
Os índios Suruí Paiter chamavam Jesco von Puttkamer de Bubula, que na língua tupi-monder quer dizer “cara vermelha”. Assim ele passou a ser conhecido por todos os grupos que fotografou. Sua última expedição foi entre os Uru-Eu-Wau-Wau, onde testemunhou por sete anos os confrontos entre os indígenas e o Estado brasileiro do final dos anos 1980. Após perder uma perna devido à diabetes, Jesco continuou planejando novas expedições, enquanto organizava seu extenso arquivo de fotografias, registros e diários de campo. Faleceu em 1994, em Goiânia, Goiás.
Recentemente foram encontrados em seu arquivo filmes que mostram a Guarda Rural Indígena – uma milícia de índios treinados pelo governo para se tornarem agentes do regime. Este material foi publicado pela Folha de S.Paulo, no final de 2012 (ver aqui e aqui).
A casa da família Jesco em Goiânia tornou-se o Centro Cultural Jesco Puttkamer, instituição mantida pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (IGPA/PUC Goiás). Além do acervo de Jesco, o Centro possui um acervo etnológico composto por peças oriundas de pesquisas científicas e atividades desenvolvidas pelo Instituto, bem como por doações. Sobre sua opção por doar seu acervo, Jesco comentou (1999):
A única alegria que sei é que em boas mãos se encontram meus milhares de diários, sons e imagens cinematográficas, para que o brasileiro do futuro, dos anos dois e três mil, se lembre que é descendente daqueles valorosos índios que haviam nestas matas amazônicas.
ENTREVISTA: Maria Eugênia Brandão A. Nunes – Coord. do Núcleo de Documentação Audiovisual do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA-PUC Goiás).
Jesco se desfez de boa parte dos seus bens para a consolidação dos seus projetos. Além desse investimento, ele tinha de alguma outra fonte de financiamento para cobrir suas expedições e sua manutenção?
Além de recursos pessoais, Jesco contou com financiamentos da revista National Geographic, da BBC de Londres e de amigos, tanto para a aquisição de rolos de filmes fotográficos a serem utilizados em suas viagens de campo, quanto para a compra de presentes para os indígenas. Jesco era um fotógrafo autonômo, convidado para participar nos trabalhos das frentes de atração da FUNAI, que estabeleceu parceria sobretudo com a National Geographic enviando artigos e fotos para serem publicados e recebendo em contrapartida auxílio financeiro para a execução de seus trabalhos junto às sociedades indígenas. Trabalhou também para alguns jornais como O Popular e Última Hora. Teve alguns artigos publicados na revista Manchete e na revista alemã Stern Magazin.
Considerando sua extensa experiência em frentes de atração, há relatos de estranhamento de indígenas com as aparelhagens fotográficas do Jesco? Ele chegou a ensinar os indígenas a fotografar?
Jesco relatou em seus diários sobre o estranhamento dos indígenas com os seus equipamentos na fase do início do contato, e com a visualização das fotografias pelos indígenas: certo reconhecimento do outro e de si mesmo. Porém ressalta-se que ele só iniciava seu trabalho de documentação quando autorizado pelo chefe da expedição, por se tratar de momento muito delicado de primeiro contato. Não há registro em seus diários sobre o ato de ensinar a utilização dos equipamentos, mas há em sua coleção algumas imagens de indígenas manipulando-os.
Em Cunhatãs e Curumins há uma grande miscelânea de etnias sob o foco da infância indígena. O que o levou a escolher esse tema específico para o seu primeiro livro?
Cunhatãs e Curumins foi realizado pelo Profº Jesco com o apoio da Editora da PUC Goiás. Ele registrou as sociedades indígenas no seu dia a dia, sua cultura material e imaterial e possui um conjunto significativo de imagens de crianças e jovens, as quais eram menos resistentes a documentação fotográfica e fílmica. Neste caso, a escolha da temática deveu-se para subsidiar a execução de um projeto institucional denominado “A Cultura Indígena nas Escolas”, com o objetivo de conscientização do respeito à cultura do outro, realizado em escolas do ensino fundamental.
Existem outros projetos de livros com o acervo do Jesco?
No momento não há nenhuma publicação em andamento, mas em projeto. Porém a coleção de Jesco Puttkamer é solicitada cotidianamente para compor exposições fotográficas, para trabalhos acadêmicos, para subsidiar laudos antropológicos, para compor capas e ilustração de livros antropológicos e didáticos.
Como é organizado e mantido o acervo de Jesco von Puttkamer pela IGPA/PUC Goiás?
O critério de organização da coleção é por grupo indígena, e após a identificação e digitalização de cada imagem é alimentado o banco de dados e imagens, possibilitando o acesso rápido, por meio de palavras chave. O acesso é apenas interno e as solicitações externas são avaliadas pela Instituição, conforme as suas finalidades.
A manutenção do acervo audiovisual do IGPA/PUC Goiás, que contém outras coleções além do fotógrafo Jesco Puttkamer, é feita pela Universidade, se responsabilizando pela viabilização de estrutura física adequada, pela manutenção dos equipamentos de climatização das salas e pelo pagamento de funcionários/professores técnicos e especialistas em acervamento. Para ações de informatização, publicações e produções audiovisuais são realizadas parcerias e convênios com outras instituições.
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LIVROS DO AUTOR
– Cunhatãs e curumins: criança indígena brasileira Goiânia: Ed. PUC Goiás, 1986
– Brasília sob o olhar de Jesco. Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2000
– Os últimos dias do Éden – as imagens de W. Jesco von Puttkamer. São Paulo: Terra Virgem, 2005
REFERÊNCIAS
– MATTOS, Izabel Missagia de & SILVA, Rosângela Barbosa. O Xingu sob o olhar de Jesco von Puttkamer. ANPUH – XXIII Simpósio Nacional de História – Londrina, 2005
WEBGRAFIA
– Bubula – o cara vermelha. Curta-metragem de Luiz Eduardo Jorge, 27min. Goiânia, 1999
– Jesco – Minha Vida, Minha Câmera. Documentário da TBC, 42’. Goiânia, s/d (disponível aqui)
ACERVO
– Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia – Pontífice Universidade Católica de Goiás (IGPA/PUC Goiás)