Fotógrafos < ver todos


Sylvia Caiuby Novaes


O Bororo, sua imagem e semelhança



Professora de antropologia na USP há quase 40 anos, Sylvia Caiuby Novaes é uma das precursoras nas discussões sobre o uso da fotografia e da imagem fílmica pela antropologia no Brasil. Sylvia iniciou suas pesquisas entre os Bororo em 1970, quando ainda cursava a graduação em Ciências Sociais. Em 1979, junto com um grupo de antropólogos e educadores, fundou o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), com o objetivo de viabilizar projetos e ações que gerassem maior autonomia aos grupos indígenas no processo de demarcação de seus territórios e preservação de seus direitos.

A fotografia e a imagem filmíca começaram a fazer parte de seu interesse acadêmico a partir de sua tese de doutorado “Jogo de espelhos, imagens da representação de si através dos outros”. Em 1993, Sylvia parte para a Inglaterra, onde realiza seu pós-doutorado no Granada Center for Visual Anthropology da Universidade de Manchester. Além de criar uma linha de pesquisa e formação em antropologia visual no Departamento de Antropologia da USP, inédita até então, também foi responsável pela idealização e implementação do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA) nessa mesma universidade, reunindo um crescente grupo de pesquisadores interessados nas discussões e relações da fotografia e do cinema com a antropologia.

Em suas reflexões sobre o uso da imagem nesta “disciplina de palavras”, Sylvia enfatiza, segundo suas próprias expressões, a “tensão” resultante de uma “relação difícil” entre o texto e a imagem, como uma “disputa de território”. A presença da fotografia em sua produção acadêmica revela, como resposta a estas indagações, o quanto a antropologia tem a ganhar acolhendo a imagem como elemento discursivo. O acesso ao acervo fotográfico da autora também permitiu encontrar imagens que, captadas sem a intenção inicial de compor registros para suas pesquisas acadêmicas, revelam um olhar descompromissado e permissivo ao acaso.

<br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> João Bosco, 1971<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Velho Mario e seu neto, 1972<br/> Aldeia do Meruri, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Crianças brincam na Aldeia do Meruri, 1972<br/> Aldeia do Meruri, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> O velho Coqueiro, grande líder Bororo, 1972<br/> Aldeia do Meruri, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Rito funerário, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Benjamim leva na aria, a tigela de barro, a refeição das almas, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Jovens rapazes são também enfeitados para participar dos rituais, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Jovem Bororo e sua filha observam o cair da tarde, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> Os rituais funerários entre os Bororo podem se estender por até três meses, desde o enterro do corpo até o momento de ornamentação dos ossos, após a decomposição da carne, s/d<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Bokoojeba é um destes heróis culturais, presente nos ritos funerários, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Para os Bororo a morte representa um caos a ser superado. Para tal reúnem-se todos os vivos de todas as aldeias e os heróis culturais que fundaram esta sociedade. Cada um destes heróis tem uma pintura corporal específica, 1973 <br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Sobre a cabeça, os cantadores usam adornos plumários com motivos clânicos, s/d<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Ao final do ritual de entrega do couro de onça, que marca o final do luto, as mulheres oferecem aos homens um caldo doce, alimento típico das almas por ele encarnadas, 1985 <br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> À noite a porta de palha da casa é fechada, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Guaracy observa as fotos tiradas pela pesquisadora, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Veículos são extremamente importantes nas aldeias e cabe aos jovens dirigi-los, s/d<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Jovem rapaz Bororo com seu jogo de tabuleiro, 1982<br/> Aldeia do Meruri, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> É durante os três últimos dias do ritual funerário que os ossos do morto, já limpos, são ornamentados. De todos os ossos é ao crânio que os Bororo dedicam especial atenção, 1985<br/> Aldeia do Tadarimana, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Os maracás – bapo – são importantes instrumentos musicais ao longo dos rituais Bororo. O rosto do cantador principal deve ser totalmente coberto com adereços de pluma, o cocar e a viseira, 1985<br/> Aldeia do Tadarimana, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> A flauta, que os Bororo denominam ika, é tocada em alguns rituais, 1985<br/> Aldeia do Tadarimana, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Homens reunidos na casa dos homens para o canto funerário, 1985<br/> Aldeia do Tadarimana, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Durante o ritual funerário homens e principalmente mulheres ligadas ao morto escarificam seus corpos, 1985<br/> Aldeia do Tadarimana, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Canto funerário, s/d<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Homem com pintura corporal participa de ritual funerário, 1985<br/> Aldeia do Garças, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Crianças se preparam com pintura corporal para participar de ritual funerário, 1985<br/> Aldeia do Garças, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Criança pintada com jenipapo participa de ritual da entrega do couro de onça, 1985<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Velha senhora Bororo em pranto ritual frente ao cesto contendo os ossos do morto, s/d<br/> Aldeia do Garças, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Jovem mãe com seu filho emplumado, logo após o ritual de nominação da criança, s/d<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> A dança do aroe-maiwu durante ritual funerário, s/d<br/> Aldeia do Garças, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Aroe-Maiwu, a alma nova nos rituais funerários, s/d<br/> Aldeia do Garças, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Joaquim atravessa o rio durante a pesca com timbó, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Saída para a pesca com timbó, parte dos ritos funerários, 1973<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Ritual de entrega do couro de onça, que marca o final do luto, 1985<br/> Aldeia do Córrego Grande, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Ritual de iniciação, s/d <br/> Aldeia do Tadarimana, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Velha senhora Bororo com colar de dentes de onça, 1972<br/> Aldeia do Meruri, MT<br/> Acervo da Autora <br/> <br/> SYLVIA CAIUBY NOVAES<br/> Ritual do Aroe-Maiwu, s/d<br/> Aldeia do Tadarimana, MT<br/> Acervo da Autora

ENTREVISTA – 06/11/2013

Você chegou a fotografar nas suas pesquisas de campo de graduação, mestrado e doutorado?

Minhas primeiras fotografias foram feitas já no primeiro contato que tive com os Bororo, em 1970. Tenho um acervo considerável sobre eles, de aproximadamente três mil negativos. A maioria é em preto-e-branco, mas também usava slides e negativo colorido. A fotografia era um elemento fundamental no meu processo de pesquisa – eu levava as imagens que eu produzia para os índios verem e, dessa forma, introduzia o tema que eu queria pesquisar. Ou seja, a partir das imagens começávamos uma discussão, que era exatamente o que me interessava.

Algumas aldeias bororo já mantinham um contato bem próximo com as missões salesianas. Eles já estavam acostumados a serem fotografados? Como era a relação deles com a fotografia?

Os salesianos escreveram a Enciclopédia Bororo, uma publicação ilustrada que eles adoravam ver. Eles já tinham convivido muito com os salesianos e com outros pesquisadores que os fotografaram, como o Claude Lévi-Strauss, por exemplo. O que eles não podiam ver eram fotos de pessoas já falecidas, porque depois que um índio Bororo morre todos os seus bens devem ser queimados, e nem o nome desta pessoa deve ser pronunciado. É um tabu. O ritual funerário pode durar até três meses, mas depois desse período o morto deve ser enterrado e esquecido. Eles vivem a perda de um modo profundo, físico, corporal, com escarificações. Depois desse período ritual, a pessoa só continua existindo enquanto categoria social. Só o clã ao qual ela pertencia é que permanece, mas os seus objetos não. Por isso, uma fotografia de um morto é vista como algo inadmissível.

A presença deles ainda estaria na foto…

Exatamente. Nós prendíamos algumas folhas da Enciclopédia Bororo com clipes para impedir que fossem mostradas imagens de coisas que as crianças e as mulheres não podiam ver, como por exemplo o zunidor – um objeto de forma fálica, comprido, em que se amarra uma das pontas com um barbante. Quando se gira, emite um ruído grave que faz com que as mulheres saiam correndo, porque elas não podem nem vê-lo, apenas escutá-lo. O zunidor é a representação de uma entidade mítica que, quando visto por elas, faz com que fiquem cansadas, com a barriga da perna inchada. É usado nos rituais de iniciação, quando os rapazes estão prontos para casar e procriar. É tipicamente uma forma de controle da sexualidade.

As fotos dos mortos tem uma agência sobre eles, caso eles as vejam?

Sim, porque os mortos tem que passar pelo funeral, que é um ritual muito longo, através do qual o indivíduo sai da categoria de vivo e passa para a categoria de morto, como um ser que não respira mais, que não tem mais o sopro vital. Ele precisa ser transformado em aroe, que é a alma. O seu lugar é na aldeia das almas. Elas não podem vir para o nosso mundo, porque vão perturbar quem está aqui. Quando você traz a foto de um falecido, você traz uma presença que incomoda, e é como se ele estivesse aqui para cobrar alguma coisa. Os rituais praticados durante os três meses de funeral servem para que esta alma fique confortável no lugar em que ela tem que ficar.

Por outro lado, vemos que essa restrição às fotografias dos mortos tem diminuído ao longo das últimas décadas, mas ainda não é uma coisa plenamente aceitável. Ao mesmo tempo em que eles desejam ter fotos deles próprios, eles queimam as dos que já morreram e destroem tudo que o lembrem. Eu já vi televisão de morto ser quebrada a machadadas, porque todas essas coisas carregam a alma da pessoa.

Sua pesquisa etnográfica, sem a fotografia e sem esse diálogo, seria outra?

Com certeza seria diferente, não haveria a possibilidade de fazer o que eu fiz sem a fotografia. Todos meus livros tem fotos, e mesmo que meu foco não fosse a imagem, ela sempre esteve presente. E foi com a fotografia que eu descobri, por exemplo, que o ritual de nominação dos Bororo é homólogo e inverso, estruturalmente, ao ritual funerário. Tudo o que acontece em um, acontece no outro, só que no sentido inverso. Foi olhando as fotos que eu descobri isso. A foto é um excelente caderno de campo, um elemento de troca em sua relação com eles, uma coisa que você fez, que você tirou e que você devolve. E eu acho que é possível também ela ser um complemento ao texto, o que é importante.

Existem outros tipos de imagem que você fotografou e que não podem ser vistas?

As mulheres não podem ver os rituais em que um membro da comunidade é eleito para representar o morto. O escolhido é coberto por uma plumagem que esconde todo o seu corpo e rosto, de modo que as mulheres não conseguem saber quem representa a alma nova [chamada de aroemaiwu ].

Isso lhe dificultou a publicação destas fotografias?

Eu publiquei poucas imagens, que são as que estão nos meus artigos, no meu mestrado e doutorado. Já pensei em fazer um livro só de fotografias, mas nunca consegui visualizar uma estratégia jurídico-legal que viabilizasse isso. Muitas  das minhas fotos mostram pessoas que já morreram, e foram feitas em aldeias diversas. Além disso, eles não tem sistemas de representação, não possuem um represente geral ou uma delegação de poder.

Como você enxerga a mudança na representação do índio na fotografia, desde o século XIX até hoje?

Sempre existiu, desde o início da história iconográfica do índio, uma oposição entre “o bom selvagem”, que seria o índio puro, intocado pela civilização, e o “mau selvagem”, que seriam aqueles de costumes bárbaros, a quem se atribui o canibalismo ou a poligamia – costumes tão inadmissíveis que retiram inclusive a condição humana dos índios. Esta dicotomia se faz presente até os dias de hoje, e vêm se alternando ao longo da história.

Nas imagens do século XIX em que a antropologia física estava muito presente, mostrando negros e índios de frente e de perfil, o objetivo era identificar a variedade de tipos físicos e entender a evolução na história da humanidade – algo que colocava em diálogo a antropologia, a medicina e o direito. Procurava-se identificar também os fenótipos humanos, ou seja, a correlação entre os tipos físicos e as patologias e desvios de comportamento.

Hoje em dia vemos alguns grupos indígenas como autores do seu próprio destino imagético, como cidadãos que reivindicam seus direitos, que chamam a televisão e os repórteres de jornais para que eles possam ser documentados, que querem ser fotografados de um determinado jeito, que fazem os seus próprios filmes. Agora os índios procuram tomar para si o modo como a sua imagem vai ser apresentada e representada para os outros. São mudanças e recorrências que estão presente desde o início da figuração do índio.

REFERÊNCIAS

– CAIUBY NOVAES, Sylvia. “A construção de imagens na pesquisa de campo em Antropologia”. In: Iluminuras, Porto Alegre, v.13, p.11-29, jul./dez. 2012. (disponível aqui)

– ___________.  “Corpo, Imagem e Memória”. In: MAMMI, Lorenzo; SCHWARCZ, Lilia. 8 X Fotografia. Ed. Companhia das Letras: São Paulo, 2008.
– ___________. “Funerais entre os Bororo. Imagens da refiguração do mundo”. Rev. Antropol. v.49 n.1 São Paulo jan./jun. 2006. (disponível aqui)

– __________. “Imagem e ciências sociais: trajetória do uma relação difícil”. In: BARBOSA, A.; CUNHA, E.; HIKIJI, R. (orgs.) Imagem-conhecimento. Campinas: Papirus, 2009.

– __________. Imagem, magia e imaginação: desafios ao texto antropológico. Mana 14(2): 455-475, 2008. (disponível aqui)
– __________. Jogo de Espelhos: Imagens da Representação de si através dos Outros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. (disponível aqui)

WEBGRAFIA

– Site do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia – USP (acesso aqui)

ACERVO

– Acervo pessoal