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Milton Guran
Do fotojornalismo à antropologia visual
Jornalista de formação, mestre em comunicação social (UnB, 1991) e doutor em antropologia (EhESS, França, 1996), Milton Guran é uma das principais referências no campo da antropologia visual no Brasil. Atualmente é professor visitante do Programa de Pós-Graduação em História e pesquisador do LABHOI – Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense. É o criador (2003) e coordenador do FotoRio – Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro.
Guran começou a atuar como fotojornalista free-lancer na imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo antes de entrar no Jornal de Brasília nos anos setenta, produzindo ao longo de sua carreira um importante acervo de imagens sobre a política institucional no Congresso Nacional. Em 1980, funda a agência Agil Fotojornalismo (Agência Imprensa Livre), junto com o livreiro Francisco Neiva e os fotógrafos Eliane Mota e Rolnan Pimenta, que logo a seguir cederam o lugar aos fotógrafos André Dusek, Beth Cruz, Júlio Bernardes, Duda Bentes e Kim-Ir-Sen.
Em 1978, aos 29 anos, enquanto trabalhava para o Jornal de Brasília, fez sua primeira incursão a uma aldeia indígena como repórter fotográfico, acompanhando o cineasta Vladimir Carvalho em uma cerimônia de Jawari, quando os Kamayurá receberam os Suyá. Sobre essa experiência, Guran comenta:
Eu cheguei nessa aldeia indígena como repórter fotográfico, não como antropólogo. Mas eu não era um repórter padrão – eu já tinha toda uma informação sobre o que era a diversidade cultural indígena. Então eu já cheguei nessa aldeia favorável a essa situação, aberto a essa novidade. Eu atuei tecnicamente como repórter: registrei e documentei os aspectos do acontecimento que era o motivo da reportagem, bem como outros aspectos daquela cultura, a construção da casa, os rituais. Me informei sobre seus processos. Sendo assim, fiz uma cobertura profunda, engajada, apaixonada – me joguei nesse trabalho. Fotografei tudo com uma lente normal e com uma grande angular. Tem apenas uma ou duas fotos feitas com teleobjetiva. Tudo bastante próximo, dialogando com eles.
Em momento nenhum me senti mobilizado para representar a minha sociedade diante daqueles indivíduos: eu me senti mobilizado para representar aqueles indivíduos diante da minha sociedade. Então pensei: eu estou aqui, então eu tenho que levar o jeito que eles são para lá. Não para que as pessoas os vejam como eu os vejo, mas sim como eles têm que se mostrar para aquela sociedade. *
Instigado pela experiência vivida nessa primeira incursão, Milton Guran decide retornar ao Xingu para fotografar outras comunidades:
Quando cheguei ao Xingu, eu já tinha uma formação a respeito. Voltei um mês depois da primeira incursão para fazer um Kuarup Kuykuro. E documentei um casamento Kuykuro, que durante mais de vinte anos foi a única documentação completa das diversas etapas de um casamento tradicional. Acompanhei duas noivas, corria de uma pra outra, pois se perdia algum detalhe de um casamento eu recuperava no outro. Assim eu consegui montar a história do casamento. Foi quando resolvi que meu negócio era mesmo fotografar indígenas. *
Ao longo de sua carreira, Milton engajou-se politicamente em diversas frentes. Lutou pela profissionalização do fotojornalismo, foi um dos fundadores e segundo presidente da União dos Fotógrafos de Brasília (1980-82) e secretário da FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas (1980-83). Ajudou a criar, em 1979, a Associação Nacional de Apoio aos Índios (ANAI).
Foi contemplado com a primeira bolsa de pesquisa em Antropologia Visual do CNPq, em 1982, que resultou no audiovisual “Gente não é Lixo”, em coautoria com a antropóloga Ana Luisa Fayet Sallas. Entre 1986 e 1989, trabalhou como fotógrafo do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, quando produziu a maior parte de sua obra fotográfica sobre índios. As imagens eram utilizadas inclusive em relatórios de demarcação de terras:
Quando eu fui fotografar os Xavante, foi para fundamentar o relatório técnico sobre o pertencimento daquela terra. Tinha que ficar explicita e justificada a maneira como aquela terra estava sendo ocupada por aquele grupo heterogêneo composto de Xavante, missionários e grileiros. A minha linguagem fotográfica tinha amadurecido, meu olhar estava instrumentalizado pela antropologia, mas o que foi determinante no campo foi a natureza da foto que eu estava engajado em fazer. *
Milton ganhou ainda uma bolsa da Fundação Vitae com o projeto “Conflito e resistência dos povos indígenas na Amazônia”, em 1991, que o levou a fotografar os povos Kayapó e Yanomami. Uma seleção desse conjunto de fotografias foi posteriormente intitulado “A fotografia nas fronteiras culturais”, com o qual ganhou o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, em 1997.
Segundo Guran, seu trabalho mais consistente foi entre os Yanomami, pois além da larga experiência adquirida ao longo de suas incursões às terras indígenas, já possuía uma reflexão antropológica mais aprofundada.
Entre suas publicações destacam-se os livros: Encontro na Bahia (Ed. Livraria Galilei, 1979), sobre a primeira reunião legal realizada pela União Nacional dos Estudantes após a implantação do regime militar; Linguagem fotográfica e informação (Ed. EGF, 2000 [1992]), sua dissertação de mestrado, onde discorre sobre como o conjunto dos elementos da fotografia fornece informações que outras linguagens não teriam condições de elaborar; e Agudás: os “brasileiros” do Benin (Ed. Nova Fronteira/EGF, 2000 [1998]), resultado do seu doutorado em Antropologia Social e Etnologia na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (França), trabalho que o consolidou como um dos principais teóricos da antropologia visual do Brasil.
Em entrevista concedida à Georgia Quintas para o blog Olha, Vê, Guran comenta sobre a importância da antropologia em sua produção fotográfica:
O fotógrafo fotografa o que ele é, na verdade. Na medida em que ele vai se formando e se construindo como individuo, seu olhar vai sendo instrumentalizado pela sua área maior de interesse e pelas suas vivências, naturalmente. A antropologia é um campo privilegiado para pensarmos a vida, já que ela pode se conectar com praticamente todos os outros campos das ciências humanas e da arte. A prática da antropologia – que se fundamenta na observação qualificada, como a fotografia, por sinal – por um lado tem me ajudado a organizar a minha percepção do mundo, embora por outro também exerça uma pressão redutora, devido ao seu caráter científico. A grande questão é como administrar essa tensão, ou seja, como fugir da antropologia para mergulhar na vida, que é a matéria prima da minha fotografia. Como fotógrafo, eu quero ser poeta, apesar de ganhar a vida como repórter, pesquisador e professor.
No artigo “Milton Guran, a fotografia em três tempos”, a historiadora Ana Maria Mauad propõe uma divisão da obra de Guran em três períodos: “o tempo da política, o tempo dos índios e o tempo dos Agudás, cada qual cobrindo uma forma de visualizar e conhecer diferentes dimensões da experiência social pela fotografia” (Mauad, 2010:1). Guran comenta no artigo essa divisão proposta pela autora sobre a sua obra:
Bom, esses três tempos são quase três campos, na verdade. Nós temos um campo que é a fotografia jornalística de cunho político; nós temos uma fotografia de documentação de povos indígenas que começou como jornalística, porque foi como repórter que eu fui pela primeira vez numa área indígena, mas que foi agregando outras visões mais ligadas ao documentarismo até finalmente chegar à antropologia. Esse período de tempo, que abrange as fotos da questão indígena entre 1978 e 1992, foi quando eu me lancei na antropologia (…) E o terceiro campo é a fotografia eminentemente antropológica feita dentro de uma pesquisa antropológica de fôlego, que foi a pesquisa para o meu doutoramento que trata da construção da identidade dos Agudás, na costa ocidental da África, mais precisamente no Benim. Então eis aí os três tempos, tempo num sentido largo, porque os períodos se misturam entre os dois primeiros campos, mas o terceiro campo é posterior. (Mauad, 2010:2)
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* Entrevista com o autor, em 31/08/2013
REFERÊNCIAS
– COELHO, Maria Beatriz. Imagens da nação: brasileiros na fotodocumentação de 1940 até o final do século XX. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Edusp, 2012.
– GURAN, Milton. Encontro na Bahia. Rio de Janeiro: Ed. Livraria Galilei, 1979.
– GURAN, Milton. Agudás: Os “brasileiros” do Benin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/EGF – Editora Gama Filho, 2000.
– GURAN, Milton. Linguagem Fotográfica e Informação. Rio de Janeiro: EGF – Editora Gama Filho, 2002.
– GURAN, Milton. “Considerações sobre a constituição e a utilização de um corpus fotográfico na pesquisa antropológica”. In: Discursos Fotográficos, v.7, n. 10 (2011), Londrina: UEL – Universidade Estadual de Londrina, 2011.
– MAUAD, Ana. “Milton Guran em três tempos”. Revista Studium n. 28, Campinas: Unicamp, 2011. http://www.studium.iar.unicamp.br/28/01.html
WEBGRAFIA
– Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais. (acesso aqui)
– Milton Guran em três tempos (parte 1 e parte 2). Direção de Ana Maria Mauad e Tarsila Pimentel. Documentário 24min. Niterói: LABHOI – Laboratório de História Oral e Imagem – UFF, 2010
– Entrevista com Milton Guran. Blog Olha Vê, 2010 (acesso aqui)
ACERVO DE ORIGINAIS
– Acervo do Autor
• Crédito do retrato: Leo Pinheiro