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Guido Boggiani
Vida e morte entre os Kadiwéu
Guido Boggiani nasceu em Omegna, no norte da Itália, em 1861. Além de fotógrafo, foi artista plástico, comerciante, viajante, etnógrafo e lingüista. Em 1887 realizou sua primeira viagem à Argentina, seguida, um ano depois, à Assunção, no Paraguai. O antropólogo Herbert Baldus o definiu como “um daqueles que gostam de arriscar-se pulando nas trevas de mundos desconhecidos. Duma roda de estetas refinados sob o sol do Mediterrâneo saltou para o coração selvagem da América do Sul” (1945, p. 11). Boggiani viajou diversas vezes ao Chaco paraguaio e suas cercanias, entrando em contato com diversos grupos indígenas e reunindo anotações e ilustrações que resultariam em publicações pioneiras sobre os habitantes da região. Segundo o historiador Giovani José da Silva:
[Boggiani] era um comerciante de peles, especialmente de couro de cervo (Blastocerus dichotomus), sendo atraído à região sudoeste do atual estado de Mato Grosso do Sul por causa da grande quantidade de animais de caça ali existente à época e também por saber que poderia contar com os índios para abatê-los. Curiosamente, o fracasso em encontrar os valiosos animais que tanto desejava, o obrigou a conviver um certo tempo entre os Kadiwéu. (in JOSÉ DA SILVA, 2002, p.44)
Retornando à Itália em 1893, durante sua estadia consultou a literatura disponível sobre o Chaco paraguaio, publicou parte dos seus estudos e estabeleceu contato com outros pesquisadores. Uma de suas obras mais completas, I Caduvei [Mbya o Guaicuru]. Viaggio d´un artista nell´America Meridionale, editada em 1895, serviu de referência para etnógrafos como Alfred Metraux, Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro. Em 1896, retorna ao Paraguai com uma câmera fotográfica e empreende um extenso registro que resultou num conjunto de trabalhos sobre linguística, etnografia, geografia e história da região. Reconhecido pesquisador e intelectual, tornou-se diretor da Revista del Instituto Paraguayo.
As mais de 400 fotografias em placas de vidro feitas por Boggiani com retratos de indígenas das etnias Kadiwéu, Bororo, Chamacoco, Toba, Payaguás, Angaites, Lengua, Sanapanás – muitas vezes sob condições desfavoráveis de captura e revelação das chapas em campo – são um dos primeiros registros fotográficos desses grupos, tornando seu autor um dos pioneiros da fotografia etnográfica na região. Em um dos seus diários, o etnógrafo italiano comenta sobre suas fotografias:
Se todas as fotografias que tirei saírem bem, apenas esta coleção já terá um valor apreciável. Não valerá somente para conservar o tipo de uma tribo histórica e etnograficamente das mais interessantes e que está às vésperas de extinguir-se totalmente, mas também conservará a memória documentada das extraordinárias atitudes artísticas para a arte ornamental, que a distingue de modo especialíssimo entre todas as tribos indígenas da América do Sul, e talvez também entre todas aquelas em igual grau de civilização do mundo inteiro. (BOGGIANI apud FRIC; FRICOVA, 1997 p.20)
Boggiani buscou agregar um refinamento artístico ao registro etnográfico em suas fotografias, dado a sua experiência como pintor. Segundo o pesquisador de história da fotografia Abel Alexander (2002), a câmera fotográfica “foi para Boggiani um auxiliar científico de extrema utilidade, porém a manejava com toda a sensibilidade de sua formação artística”. De fato, os retratos de Boggiani – sejam os que registram cenas cotidianas ou aqueles com o objetivo de descrever a arte corporal Kadiwéu e Chamacoco – destacam-se por mostrar os indígenas retratados com um semblante que evidencia uma certa desenvoltura e intimidade ao posar para a câmera fotográfica, fugindo do padrão de retrato antropométrico comum da época. Paradoxalmente, foi a própria fotografia que causou a morte de Boggiani, segundo relata Carlos Eugênio M. de Moura:
Alguns povos indígenas, com os quais convivia diretamente e que registrava continuamente com sua câmera, começaram a pensar que os males e enfermidades de que padeciam se deviam à atividade daquele novo ‘bruxo’ e a seu estranho aparato demoníaco, com o qual lhes roubava a alma, algo encarado como irremediável tragédia, ameaça à saúde e à vida. (MOURA, 2012, p.73)
Em 1902, a pedido da comunidade italiana de Assunção, um grupo parte em busca do paradeiro de Boggiani, que estava há meses sem dar notícias. Encontram seus restos e de seu ajudante Felix Gavilán decapitados, supostamente para que sua alma não pudesse retornar ao seu corpo e causar males após sua morte. Seus objetos pessoais e de pesquisa, aparentemente pelo mesmo motivo, também foram destruídos e enterrados.
Em 1904, seus negativos, que haviam sido enviados para a Sociedad Fotográfica Argentina de Aficionados desde 1898 são editados em uma coleção de cartões postais por Robert Lehmann Nitsche, do Museo de la Plata, sob o título de La Colección Boggiani de Tipos Indigenas de Sudamérica Central. As imagens foram selecionadas pelo pesquisador alemão seguindo os critérios científicos e antropológicos da época, organizadas de acordo com a tribo, grupo linguístico, sexo e idade. Anos depois, o jovem botânico tcheco Alberto Vojtech Fric (1882-1944), que também havia realizado estudos na região do Chaco, resgatou um considerável número de negativos de Boggiani e os levou a Praga.
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REFERÊNCIAS
– ALEXANDER, Abel. “El arte de robar el alma a los índios”. Clarín.com, 17/11/2002 (disponível aqui)
– BALDUS, Herbert. “Introdução”. In BOGGIANI, Guido. Os Caduveo. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1945
– BERGATTA, Luis; BRUM, Laura; TEZANOS, Sabela de. Catálogo da exposição ‘Miradas al otro – Tarjetas postales con fotografias de Guido Boggiani – Colección Mateo Moretti’. Montevidéu: Museu de Arte Precolombino y Indigena, 2008
– FRIC, Pavel; FRICOVA, Yvonna (Orgs.). Guido Boggiani Fotograf. Praga: Nakladatelstvi Titanic, 1997
– JOSÉ DA SILVA, Giovani. A construção física, social e simbólica da Reserva Indígena Kadiwéu: memória, identidade e história. Dissertação (Mestrado em História) – Dourados: UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), 2004
ACERVO
– Sociedade Geográfica Italiana (Itália)
– Weltmuseum Wien (Áustria)
– Museo Isaac Fernández Blanco (Argentina)