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Ermanno Stradelli
Um conde italiano transformado em mito
Ermanno Stradelli nasceu em 1852, herdeiro de uma antiga família nobre da cidade de Borgotaro (atualmente na província de Parma, Itália). Seu pai recebeu o título de conde pouco antes de seu nascimento e Ermanno, como filho primogênito, herdou o título. O verdadeiro motivo que levou Stradelli a deixar sua confortável e abastada vida, interromper seus estudos em direito e tomar a decisão de partir para explorar lugares inóspitos ainda é desconhecido pelos estudiosos de sua vida e trajetória. A pesquisadora literária Aurora Bernadini (2009) afirma que era uma fantasia muito freqüente entre os filhos de famílias nobres na Europa do século XIX aventurar-se em expedições geográficas exploratórias por terras estranhas. Estudando por conta própria geografia, topografia, geologia, botânica, farmácia e homeopatia, além de técnicas e processos fotográficos, Stradelli parte para o Brasil em 1879.
Trabalhou inicialmente como fotógrafo, estabelecendo-se comercialmente em Manaus. Passa a conviver com os missionários franciscanos italianos, percorrendo com eles o rio Purus e seus afluentes. Conhece o nheengatu – a língua geral das populações da bacia amazônica – cujo estudo e pesquisa acompanhará Stradelli pelo resto de sua vida. Interessado pela cultura dos índios Tariana e Tukano, começa a estudar os idiomas e a tradição oral dessas etnias. Acaba conhecendo o mito de Jurupary, figura central da cosmologia dos indígenas da região dos Uaupés. A partir das dezenas de versões locais da lenda, recolhidas entre índios da região por seu amigo indígena e companheiro de viagens Maximiliano José Roberto, Stradelli traduz e adapta o mito ao gênero de narrativa para publica-lo no boletim da Real Sociedade Geográfica Italiana.
Participou de uma comissão brasileira para demarcação das fronteiras com a Venezuela, colaborou com o botânico João Barbosa Rodrigues na fundação do Museu Botânico de Manaus e integrou a expedição de pacificação dos índios Crichanás (Waimiri-Atroari) do rio Jauaperi. Em 1884 retornou à Itália, concluindo o curso universitário em Pisa. Em 1887 chegou à Venezuela para tentar localizar a nascente do Rio Orenoco, sem obter êxito.
Já naturalizado brasileiro, Stradelli dá continuidade à sua carreira jurídica sendo nomeado promotor público. Neste período organiza as anotações recolhidas durante suas viagens e revisa os inúmeros verbetes do vocabulário nheengatu, sua obra mais trabalhosa e ambiciosa, que veio a se tornar sua maior contribuição científica. Em 1901 faz uma última breve viagem à Itália, proferindo uma conferência para a Sociedade Geográfica Italiana. Em 1923 é exonerado do cargo na promotoria devido ao desenvolvimento de hanseníase. Internado no leprosário de Umirizal, o Conde – como era conhecido pelos seus amigos – morre em 1926, numa pequena cabana, “generoso com seus companheiros de infortúnio e cercado de mapas, manuscritos e lembranças” (MANERA, 1999 apud BERNADINI, 2009, p. 42).
Stradelli passou 43 anos no Brasil dedicando-se ao estudo dos povos indígenas que estabeleceu contato. Desenvolveu uma compreensão preponderantemente humanizada em relação a essas culturas, movimento que contrariava a visão de “inferioridade” recorrente entre etnólogos, exploradores e missionários da época. No Alto Uaupés, segundo relata o historiador, literato e médico Antônio José Loureiro, os índios mais velhos ainda duvidam da morte de Stradelli, “e o conde que dançava com os tárias o Canto dos Inajá, com os uanana o Canto da Puberdade, com os cubeo o Canto do Peixe, ainda faz parte das histórias que se transmitem de pai para filho, de geração em geração” (BERNADINI, 2009, p. 43).
A contribuição de Stradelli como fotógrafo encontra-se atualmente no Arquivo Fotográfico da Sociedade Geográfica. O acervo consiste em 83 fotografias preservadas, contendo imagens de suas expedições entre 1887 e 1889, com temas que variam entre rios, paisagens, a cidade de Manaus, índios e malocas da Amazônia e reproduções de inscrições e desenhos sobre pedras.
Apesar de ter acesso a diversos aspectos da cultura indígena, graças ao raro contato que estabeleceu – Stradelli chegou a ser o único autorizado a adentrar na região dos Uaupés num período de conflitos entre lideranças de aldeias, comerciantes e missionários – as fotografias de índios realizadas por Stradelli variam muito pouco nos temas, havendo apenas alguns retratos individuais e coletivos. Provavelmente o fato se deve a uma característica própria de sua linguagem fotográfica, à prioridade que Stradelli dava ao registro escrito ou às restrições impostas pelos próprios indígenas. Neste interessante relato do período em que esteve na região dos Uaupés, ele esclarece alguns dos meandros desta relação fotográfica:
Com a fotografia foi mais difícil; se não tivesse sido um caso fortuito que me permitiu retratá-los, jamais o teria conseguido. Ainda me valia do incômodo processo em colódio e fixava com cianeto. Em Jauaretê, aonde havia chegado sem ter conseguido fotografar um único índio, por mais que tivesse fotografado os frades e seus discípulos de todas as maneiras possíveis, montei a tenda que me servia como câmara escura perto da casa do tuxáua Mandu e tirei umas fotos da cachoeira e da aldeia. Na manhã seguinte aparece o tuxáua pedindo-me veneno para as formigas. Respondo que não tenho. Ele me diz, com todas as letras, que estou mentindo; me inquieto e, então, ele me conduz ao lugar onde eu tinha montado a tenda no dia anterior. Lá mesmo, com um gesto grandioso, digno de um melodrama, aponta-me o campo semeado de mortos. Tive de baixar a cabeça e dizer: cupiteen, ‘é verdade’. É que, sem querer, havia montado a tenda sobre um formigueiro e naturalmente, onde havia penetrado, o cianeto tinha cumprido sua missão. Eu já havia tirado as fotos de que precisava e não queria privar-me do cianeto, do qual não possuía grande quantidade, quando tive uma idéia. ‘Você tem razão’, disse ao tuxáua, ‘mas este veneno não é o melhor, pois é feito com a vista das plantas e das casas; o bom é o que se faz com os homens e com as mulheres. Venha aqui, fique parado ali em frente à máquina e verá que bom veneno’. Mandu aceitou de pronto, e, quando saí da câmara, dei-lhe uma boa solução de cianeto, com todas as recomendações possíveis. Foi experimentá-lo, acompanhado por toda a sua gente. O efeito foi extraordinário. A partir desse dia, arranjou-me pessoas para que as fotografasse. Quando as de Jauaretê terminaram, mandou vir de fora e tenho certeza de que, sem me mexer dali, teria podido fotografar o Uaupés inteirinho. No final, era obrigado a fazer fotos de grupos, para não desagradá-los. (STRADELLI, [1890] 2009, p. 244-245)
Dos indígenas retratados, apenas as etnias Apurinã, do rio Purus (identificada pelo nome “Ipuriná”, como eram conhecidos antigamente), e Wapixana, do rio Branco, aparecem identificadas nas legendas fornecidas pela Sociedade Geográfica Italiana. Stradelli lamentou, em seus relatos, a perda uma grande parte de suas imagens por conta de situações que vão desde naufrágios em rios até ataques de cupins às suas chapas fotográficas. Por ter percorrido grande parte das regiões dos rios Negro, Uaupés e Branco, as etnias Tariana, Tukano, Tuyuka, Desana, Maku, Cubeos, Pira-Tapuya, Uanana e Baré, com as quais estabeleceu contato, provavelmente estariam também entre as fotografadas.
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REFERÊNCIAS
– BERNARDINI, Aurora Fornoni. “Introdução”. In STRADELLI, Ermanno. Lendas e notas de viagem – A Amazônia de Ermanno Stradelli. São Paulo: Martins, 2009.
– FONTANA, Riccardo. A Amazônia de Ermanno Stradelli. Brasília, 2006.
– NAVARRO, Eduardo de Almeida. “O Conde Italiano Ermanno Stradelli: um mestre do nheengatu no século XX”. (disponível aqui)
– STRADELLI, Ermanno. Lendas e notas de viagem – A Amazônia de Ermanno Stradelli. São Paulo: Martins, 2009.
– TACCA, Fernando de. “O índio na fotografia brasileira: incursões sobre a imagem e o meio”. História, ciências, saúde – Manguinhos – Vol. 18, nº 1, p.191-223. Rio de Janeiro., 2011 (disponível aqui)
ACERVO
– Acervo da Sociedade Geográfica Italiana