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Claudia Andujar
Yanomami: a etnopoética da imagem
Produzida essencialmente ao longo dos anos 1970 e parte dos anos 80, a obra de Claudia Andujar (1931) sobre os Yanomami introduz questões da fotografia contemporânea dentro do espectro da iconografia dos povos indígenas no Brasil. Sua narrativa visual trouxe para os campos fotográficos predominantes (fotografia documental clássica, fotografia etnográfica e fotojornalismo) um olhar assumidamente pessoal, aliando intenções documentais com uma busca estética bastante apurada. Lançando mão de imagens com fortes contrastes e efeitos visuais que nos remetem ao onírico, Claudia promove em sua obra um “diálogo entre a luz ‘material’ e a luz ‘simbólica’” (Duarte: 2003).
Com retratos pouco convencionais que “fogem a uma descrição e nos remetem para uma relação atemporal nas imagens de índios (…) para além de uma fotografia somente documental”, Fernando de Tacca defende que:
Claudia Andujar, de forma profética, prenuncia desenvolvimentos posteriores no campo fotográfico sobre a imagem do índio ao quebrar estruturas moduladoras de nossa forma de ver, pautadas em modelos positivistas da arte de descrever presentes no programa da câmara fotográfica, e incluindo a possibilidade da subjetividade e da autoria. (2011:117)
Segundo a própria autora, a idiossincrasia de sua obra deve-se essencialmente à sua trajetória pessoal, pautada pela condição de minoria:
Sem dúvida, minha fotografia é marcada pelo meu passado. Um passado de guerra, um passado de minorias. Isso é algo que não só me preocupa, mas me perturba. É parte da minha vida. Me interesso muito pela questão da justiça e das minorias que estão tentando se afirmar no mundo, mas se deparam sempre com um dominador que procura apará-las. Mas existe também um outro lado, que é a estética, o equilíbrio, presente nas minhas imagens. Nem sempre o lado social pode se juntar ao lado estético. Eu sofro por isso. Quando consigo juntar as duas coisas, me sinto aliviada. (Andujar in Persichetti, 2000:15)
Nascida na Suíça, Claudia mudou-se para os Estados Unidos após perder quase toda sua família durante a Segunda Guerra Mundial. Em Nova York, conhece Julio Andujar, refugiado da Guerra Civil Espanhola, com quem se casou em 1949. Separaram-se poucos meses depois, quando Julio foi enviado para a Guerra da Coréia.
Em 1955, Claudia chega a São Paulo, onde já vivia sua mãe. Começa a viajar pelo Brasil e pela América Latina, fotografando essencialmente para si mesma e como uma forma de estabelecer contato com a população local, já que na época Claudia ainda não dominava a língua portuguesa. Progressivamente, começou a publicar suas imagens tanto em revistas brasileiras (Quatro Rodas, Setenta, Claudia, Goodyear Brasil) como estrangeiras (Life, Look, Fortune, IBM, Horizon USA, Aperture).
Por orientação de seu amigo Darcy Ribeiro, Claudia entrou em contato com índios pela primeira vez em 1958, durante uma visita à Ilha do Bananal, terra dos Karajá. Algumas dessas imagens foram compradas por Edward Steichen, então diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, e depois foram publicadas pela Life.
A partir de 1967, começa a colaborar com a revista Realidade, da Editora Abril, junto com seu segundo marido, o americano George Love. Em 1971, uma edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia a conduz até os Yanomami.
Esta viagem representou o grande divisor de águas em sua carreira e em sua vida. No intuito de se aprofundar no entendimento desta cultura, Claudia decide então abandonar São Paulo e o fotojornalismo, indo viver entre Roraima e Amazonas em tempo integral. Para isso, contou com o apoio de duas bolsas da Fundação Guggenheim (1971 e 1974) e uma da Fapesp, em 1976.
Em 1978, após ser enquadrada na lei de Segurança Nacional pelo governo militar e ser expulsa do território indígena pela Funai, retorna a São Paulo e organiza um grupo de estudos em defesa da criação de uma área indígena Yanomami. Este foi o embrião da ONG Comissão pela Criação do Parque Yanomami, CCPY (hoje Comissão Pró-Yanomami). Claudia assume então a coordenação da campanha pela demarcação desta terra indígena, o que finalmente ocorreu em 1992.
Ao assumir o ativismo político em prol da causa Yanomami, Claudia foi diminuindo progressivamente sua atividade fotográfica ao longo dos anos 80, justamente quando a mobilização em torno da demarcação ia ganhando força. Por outro lado, a importância de sua obra foi ganhando reconhecimento nas décadas seguintes, até ser consagrada como um dos maiores nomes da fotografia brasileira. Ainda assim,
Apesar de intuir que minhas fotos sobreviverão a mim, tornando-se o traço principal da minha identidade, esse jamais foi o meu objetivo. A sobrevivência do povo Yanomami é, para mim, a questão mais importante. Talvez se possa nomear isso mais amplamente, como a “vulnerabilidade do ser”. No entanto, esse interesse foi dirigido a eles porque eu não poderia abarcar o mundo inteiro. Escolhi-os porque senti que, dentro de minhas possibilidades, poderia proporcionar-lhes algo. (2005:117)
ENTREVISTA – 27/07/2013
Antes da fotografia, você começou estudando pintura. Como ocorreu a transição para a fotografia?
Eu comecei a fotografar no Brasil. Cheguei em 1955 e me encontrei aqui. Antes disso eu morei em Nova York, que tem uma grande riqueza cultural, mas eu não me encontrava como pessoa. Chegando aqui eu procurei conhecer o Brasil. Eu programava viagens, muitas delas pelo litoral. Meu interesse nunca foi de fotografar a classe média. Eu procurava uma autenticidade, que afinal encontrei entre os índios. Essas fotos eu fazia para mim, eu não as comercializava. Estava procurando uma linguagem minha. Nessa época eu dava aulas de inglês para me sustentar.
O seu primeiro contato com os índios foi com os Karajá, em 1958, certo?
Sim, e foi o Darcy Ribeiro quem me sugeriu para ir visitá-los na Ilha do Bananal. Foi a partir dessa experiência que eu vi que talvez eu pudesse usar a fotografia como profissão [algumas dessas imagens foram compradas pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, e também publicadas pela revista Life. Depois disso eu também visitei os Bororo e os Xikrin Kayapó, antes de chegar nos Yanomami.
E como você chegou até os Yanomami?
Eu entrei na revista Realidade em 65, e fiquei até 71. Eu me dei muito bem trabalhando com eles, porque eu tinha liberdade de desenvolver trabalhos com profundidade. Não sei se houve outra revista no mundo que respeitasse tanto o tempo do fotógrafo. Foi aí que realmente eu comecei a me encontrar por meio da fotografia.
A Realidade fez uma edição especial sobre a Amazônia [1971]. Para mim esse foi o grande divisor de águas. A primeira vez que encontrei os Yanomami, em Maturacá, Amazonas, eu fiquei encantada. Eram índios quase de primeiro contato. Nesse momento eu decidi largar o fotojornalismo, para tentar encontrar uma maneira de ficar morando numa aldeia, para conhecê-los profundamente. Depois eu consegui uma bolsa da Fundação Guggenheim que me permitiu ficar um ano por lá. Minha intenção era me dedicar a eles o tempo que fosse necessário, para poder me aprofundar na cultura, e então conseguir transmitir isso em imagens.
O seu primeiro livro sobre os Yanomami foi lançado pela Práxis, em 1978. Como foi a concepção desta publicação?
Entre 1971 e 1977 eu fiquei morando lá. Eventualmente eu voltava para cá, mas a minha vida era lá. Depois disso eu fui expulsa pela Funai e pelos militares, então eu tive que voltar para São Paulo. Em 1978 eu tive que recomeçar a minha vida aqui. Foi muito difícil no começo. Foi quando comecei a editar esse trabalho para fazer um livro, que saiu no mesmo ano do Amazonas [feito em parceria com George Love]. Eu procurava colocar no livro quem são os Yanomami.
Porquê escolheu a fotografia em preto-e-branco? Você chegou a tentar fazer em cor?
A maior parte do meu trabalho é em PB, mas também tenho algo de cor. Não sei te responder se foi uma escolha consciente ou natural. Me senti mais à vontade assim.
A edição desse livro lança um olhar poético sobre os indivíduos Yanomami e suas tradições. Porque você decidiu não incluir nenhuma situação de conflito, de doenças, a “denuncia” das mazelas?
Realmente eu tentei evitar colocar isso nos livros, por causa da situação política daquela época. Em 1974 o governo decidiu construir a Perimetral Norte. A idéia era abrir a Amazônia para a indústria. Eu estava lá quando começaram as obras. Foi terrível, centenas de índios morreram por causa disso. Depois o governo abandonou a obra. Eu evitei mostrar o lado trágico. Eu queria mostrar um povo bonito, toda a sua riqueza. Tem toda a parte do xamanismo. Eu estava mais interessada em trabalhar nisso.
Foi aí que surgiu o seu engajamento na causa Yanomami? Como você conseguiu compatibilizar a fotografia com o ativismo político?
Depois de ter presenciado todo o desastre que foi o contato, eu vi que além de fotografar eu deveria defender a terra e a cultura deles. Isso se tornou uma questão pessoal para mim.
Em 1978 a gente formou um grupo de estudos, que mais tarde se constituiu em uma ONG [CCPY – Comissão pela Criação do Parque Yanomami, hoje Comissão Pró-Yanomami]. Foi um tipo de reação por ter sido expulsa de lá. O primeiro alvo era conseguir a demarcação. Eu fui a coordenadora dessa ONG até 1992, quando o [então presidente Fernando] Collor demarcou o território. Por causa disso, nos anos 80 eu fotografei muito pouco. Me dediquei à procura de contatos que pudessem ajudar na campanha. Viajei muito, inclusive com o Davi [Kopenawa Yanomami]. Agora eles já têm as suas próprias organizações, mas o Davi fala que ele aprendeu a lutar através de mim. Eu diria a mesma coisa – aprendi a lutar com ele.
As fotos que compõem o livro Marcados foram feitas nesta época, certo?
Nos anos 80, eu voltei a fotografar por um tempo. Além de lutar pela terra, vimos que também precisávamos fazer um trabalho relacionado à saúde dos Yanomami, já que o atendimento era muito precário. Vieram então dois médicos da Escola Paulista de Medicina. Além de organizar as visitas deles às aldeias, eu fotografava cada índio vacinado, e usávamos as fotos nas fichas de identificação. Isso porque, tradicionalmente, os Yanomami não têm nomes próprios, como temos em nossa cultura.
Foi somente nos anos 2000 que percebi porque estas fotografias me marcavam tanto. Conceitualmente, eu as identifico com a minha própria história e com o destino da minha família. Meu pai, meu tio, minha avó – todos foram marcados com números ao serem deportados para os campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Já os Yanomami foram marcados com os números no intuito de salvá-los. Levei 20 anos para entender isso.
A partir daí você parou de fotografar?
Eu agora trabalho sempre com séries. Tento encontrar novas linguagens em trabalhos antigos. Eu organizo as coisas pelo olhar que tenho a respeito delas. A partir do ano 2000 eu comecei a ter dificuldades de locomoção, então parei de sair para fotografar.
Recentemente eu fui convidada para inaugurar um pavilhão permanente com meu trabalho em Inhotim. Aí eu soube que haveria uma grande assembléia nos Yanomami. Falei com o curador, e então eles cobriram os custos dessa viagem. Isso foi há uns três anos. Foi a última vez que fiz um material novo, e que ainda é inédito.
Falando sobre outros fotógrafos que se dedicaram à temática indígena, houve algum trabalho que te influenciou de maneira mais específica quando você começou a fotografar os índios?
Só fui conhecer depois. Eu não conhecia muito essa turma. A Maureen Bisilliat eu conhecia, assim como a Nair Benedicto uns tempos mais tarde. Naquela época quem eu conheci e me senti mais perto foi o Eugene Smith, através do George Love, com quem eu fui casada.
Eu e o George tínhamos um trabalho muito diferente. Ele também participou dessa edição da [revista Realidade sobre a] Amazônia, mas a gente não viajou junto. Ele trabalhou muito com fotografias aéreas, por uma razão muito simples: ele tinha uma asma crônica, e não agüentava a umidade. O trabalho dele é todo feito do ar. Uma vez quando comecei a trabalhar com os Yanomami ele me acompanhou, mas não agüentou ficar por muitos dias.
Falando sobre o seu acervo, você tem idéia do tamanho dele?
Eu nunca contei, mas talvez tenha uns 10 mil negativos. Eu organizo por data e por assunto, em envelopes. Os Yanomami é mais por tema do que por data. As grande divisão é antes e depois da Perimetral, que foi a causa de todo o desastre. Depois tenho os projetos mais contemporâneos, como esse trabalho sobre a saúde [Marcados] e as assembléias Yanomami.
Como você está gerindo seu acervo?
Eu recebi uma proposta do Instituto Moreira Salles, mas na época recusei. Eu estou refletindo no assunto, sei que eles gostariam muito de ter o acervo, mas ainda não tomei nenhuma decisão. Eu acho que esse acervo deve ficar no Brasil. Eu devo isso aos índios. Eu ainda não estou no ponto de me desfazer do meu trabalho.
Procuro um tratamento especial para este acervo, porque quero que os índios possam ter acesso a estas imagens também. Hoje eu não acho que eles tenham um real entendimento do que significa toda essa obra. Vai chegar um momento em que eles vão procurar saber a história deles. Hoje em dia os mais jovens têm máquinas digitais, e estão num processo de começar a entender as possibilidades do meio fotográfico. Eu quero ter a certeza de que no dia em que eles vierem a procurar algo sobre o passado, que eles tenham acesso a todo este arquivo.
Eu estou trabalhando agora com a Galeria Vermelho. Eu divido o valor das vendas em três, entre eu, a galeria e os Yanomami. Este dinheiro está sendo usado para cobrir os projetos de radiofonia deles, entre as aldeias.
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LIVROS PUBLICADOS
– A week in Bico´s World: Brazil . NY/Londres: Crowell-Collier Press/Collier-Macmillian, 1970
– The Amazon. Amsterdã: Time-Life Books International, 1973
– Amazônia [com George Love]. São Paulo: Práxis, 1978
– Yanomami em frente ao eterno. São Paulo: Práxis, 1978
– Mitopoemas Yãnomam. São Paulo: Olivettti do Brasil, 1979
– Missa da terra sem Males. Rio de Janeiro: Tempo/Presença/Centro Ecumênico de Documentação, 1980
– Yanomami: A Casa, a Floresta, o Invisível. São Paulo: DBA, 1998
– A Vulnerabilidade do Ser. São Paulo: Cosac Naify/Pinacoteca do Estado, 2005
– Yanomami, la danse des images. Paris: Marval, 2007
– Marcados. São Paulo: Cosac Naify, 2009
REFERÊNCIAS
– BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Fotografar, documentar, dizer com a imagem”. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro: UERJ/NAI, 2004
– DUARTE, Rogério. “Olhares do Infinito – notas sobre a obra de Claudia Andujar”. Revista Studium nº 12, Instituto de Arte da UNICAMP, 2003 (disponível aqui)
– PERSICHETTI, Simonetta. Claudia Andujar. São Paulo: Lazuli Editora / Cia Editora Nacional, 2008
– PERSICHETTI, Simonetta. Imagens da fotografia brasileira 2. São Paulo: Estação Liberdade : Senac, 2000
– TACCA, Fernando de. “O índio na fotografia brasileira: incursões sobre a imagem e o meio”. História, ciências, saúde – Manguinhos – Vol. 18, nº 1, p.191-223. Rio de Janeiro., 2011 (disponível aqui)
WEBGRAFIA
– Povo da Lua, Povo do Sangue: Yanomami. Direção de Marcelo Tascara, 1983
– Entrevista Claudia Andujar. Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo, 2010. (acesso aqui)
– Antônio Abujamra entrevista a fotógrafa Claudia Andujar. Provocações: TV Cultura, 2011. (Bloco 1, Bloco 2 e Bloco 3)
– Realidade: O fotojornalismo [autoral] de uma revista. Marcelo Eduardo Leite, 2013. (acesso aqui)
ACERVO DE ORIGINAIS
– Acervo do Autor