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Comissão Rondon


Pacificação, integração e nacionalismo



Com o objetivo principal de ocupar uma parte ainda desconhecida do território brasileiro e de defender as fronteiras nacionais, a partir de 1890 o governo instaurou uma série de comissões para implementar linhas e postos telegráficos pelo interior do país. Ao travar contato com dezenas de grupos indígenas que se encontravam na rota traçada, as comissões chefiadas pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon se tornaram emblemáticas pelo grande volume de material etnográfico e iconográfico trazido por eles, cujo efeito foi o estímulo às primeiras políticas indigenistas no Brasil.

Presentes desde o século XIX, as discussões referentes ao posicionamento do Estado em relação aos povos indígenas levaram Rondon a criar, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (mais tarde conhecido apenas como SPI), vinculado ao Ministério da Agricultura. Guiado por ideais positivistas e humanistas, o órgão visava implementar uma política de proteção aos índios, guiados pela idéia de integração dessas populações à sociedade brasileira e ao seu processo produtivo.

Influenciado pelo viés científico das grandes expedições do século XIX e do início do século XX, as comissões telegráficas contavam também com botânicos, zoólogos e outros cientistas para realizarem levantamentos da fauna e flora. Rondon e seus ajudantes faziam o levantamento topográfico e geográfico, e também colhiam dados etnográficos e realizavam medições antropométricas dos grupos indígenas encontrados.

Para produzir a documentação visual dos trabalhos da Comissão, Rondon tentou contratar um estabelecimento comercial de fotografia do Rio de Janeiro, mas devido às grandes distâncias e à falta de experiência dos fotógrafos no trabalho de campo, sua iniciativa não prosperou. Rondon aceitou então a proposta do então tenente Luiz Thomaz Reis e criou a Secção de Cinematographia e Photographia do SPI. Major Reis, como ficou conhecido, foi o responsável pela coordenação do departamento, trazendo equipamentos fotográficos e cinematográficos da Europa, lançando mão de uma tecnologia ainda inexistente no Brasil. Seus primeiros registros começam em 1914.

<br/> <br/> AUTOR NÃO IDENTIFICADO<br/> Retrato de Luiz Thomaz Reis, s/d<br/> Negativo de vidro<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> ALBERTO BRAND<br/> Rondon e sua barraca de serviço, s/d<br/> Negativo de vidro<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ LEDUC<br/> Rondon com a embarcação Juruena, s/d<br/> Negativo de vidro<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> BENJAMIN RONDON<br/> O General Rondon explicando o funcionamento de um relógio aos índios Caianã, s/d<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol.II, 1953:338<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> JOSÉ LOURO<br/> Cel. Rondon e seu jovem amigo Tacuatépe, s/d<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol.I, 1946:154<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Rondon distribui presentes para os índios Paresi, s/d<br/> Negativo de vidro<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> O Tenente Reis entre os Paresi, s/d<br/> Negativo de vidro<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Rondon e o fotógrafo entre os índios Paresi, s/d<br/> Negativo de vidro<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> CAPITÃO AMARANTE<br/> Rondon tomava notas sobre a ethnographia enquanto os Kepi-kiri-uats ouviam as nossas musicas. Ao lado vasos indígenas que foram trazidos para o Museu, s/d<br/> in RONDON, 1922:157<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> CHARLOTTE ROSENBAUM<br/> Marco de Fronteira do Brasil no rio Tiquié. Índios Tuiúca e Tucano interessam-se vivamente pela máquina cinematográfica do Major Reis, s/d<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol.III, 1953:224<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> BENJAMIN RONDON<br/> No topo do Roraima e General Rondon com seus auxiliares indígenas, guias e carregadores numa altitude de 2850 m, onde convergem as três fronteiras: Brasil, Guiana Inglesa e Venezuela, s/d<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol.III, 1953:338-339<br/> Acervo Museu do Índio <br/> <br/> BENJAMIN RONDON<br/> Dois de Novembro de 1927, despedida do Roraimã, 1927<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol.III, 1953:340<br/> Acervo Museu do Índio

Rondon reconhecia o poder persuasivo da imagem para divulgação dos trabalhos da Comissão, encaminhando aos seus superiores e às autoridades políticas relatórios ilustrados com centenas de fotografias, que registravam as construções das linhas telegráficas e as relações estabelecidas com os diversos povos indígenas encontrados. Já as apresentações públicas dos filmes feitos pelo Major Reis, e os artigos publicados nos principais órgãos de imprensa do país, tinham como objetivo estratégico alimentar o espírito nacionalista na sociedade civil brasileira, principalmente junto à uma elite urbana sedenta por imagens e informações sobre o desconhecido sertão brasileiro, aos seus olhos ainda exótico e inexplorado.

A coleção Índios do Brasil, publicada em três volumes (1946-1953), abrange a produção visual registrada desde o início dos trabalhos das Comissões Construtoras de Linhas Telegráficas no Estado de Mato-Grosso (1890), até a extinção da Inspetoria de Fronteira (1938). Nesta coleção é apresentado o material fotográfico mais consistente realizado pelo próprio Major Reis e também por outros membros da Comissão, como o engenheiro Benjamin Rondon (filho de Rondon), o tenente João Lyra, o expedicionário Carlos Lako e os fotógrafos José Louro e Charlotte Rosenbaum, entre outros. Parte das imagens presentes nesses três volumes, porém, são reproduções de fotogramas dos filmes realizados pelo Major Reis. No texto de introdução, escrito pelo próprio Rondon, é destacado em tom épico a dificuldade enfrentada pelos membros da Comissão na captura das imagens:

(…) cumpre lembrar o esfôrço que, na maioria dos casos, representa a documentação fotográfica através dos sertões brutos. Pesados pacotes, então, de chapas de vidro que escapavam de se desfazerem em cacos, nos rudes transportes por terra ou na travessia das cachoeiras e corredeiras, onde tantas canoas, materiais e vidas ficaram para sempre sepultados, era quase por milagre que chegavam aos nosso gabinetes fotográficos nas cidades! (RONDON, 1946, p.4)

Os textos também enaltecem a primazia do contato com algumas tribos, ressaltando a “política de não agressão” propagandeada por Rondon:

Alguns dos grupos que as fotografia documentam, foram assinalados em primeira mão pelas nossas expedições e trazidos ao nosso convívio amistoso, no sertão, por processos humanitários, subordinados ao lema que estabelecemos para exprimir as nossas disposições, como civilizados, para com os aborígenes: “Morrer se fôr preciso; matar, nunca! (Ibidem, p. 5)

<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> VÁRIOS AUTORES<br/> Os Nhambiquara, 1907-1909<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 09 a 67<br/> Acervo Museu do Índio

No primeiro volume, publicado em 1943, o diálogo entre texto e imagem retrata um índio primitivo e selvagem. A figura de Rondon personifica a chegada de uma “civilização” que pacifica este índio e, segundo acreditava, propiciaria um salto em sua marcha evolutiva. As fotografias mostram índios Paresí e Nambikwara recebendo presentes, roupas e até uniformes militares, divulgando o sucesso de sua abordagem não agressiva ao indígena outrora hostil à presença do homem branco na região. Segundo a pesquisadora responsável pela organização do acervo de imagens do Museu do Índio, Denise Portugal Lasmar:

Inúmeras fotografias retratam os índios em atividades civilizadas, trabalhando no telégrafo, nas máquinas, vestidos, usufruindo a infra-estrutura dos postos do SPI, mas em nenhuma delas em situação de conflito, que comprovassem os freqüentes relatos de ataque dos diários de viagem. (LASMAR, 2001, p.141)

O ritual funerário dos Bororo é ilustrado por fotogramas retirados do filme Rituaes e festas bororo, filmado pelo Major Reis em 1916 e montado no ano seguinte. Tanto o texto introdutório quanto as imagens que ilustram o livro omitem a presença da missão salesiana presente nesta comunidade desde o século XIX, levando o leitor a crer que os índios estavam praticamente isolados de qualquer contato com o homem branco. Um fato interessante a ser destacado é a intervenção feita em algumas fotografias, onde foram cuidadosamente desenhadas tangas para que os retratados não aparecessem totalmente nus. Tratava-se, provavelmente, de uma censura auto-imposta, para que as fotos pudessem ser publicadas sem destoar do pudor moral da época.

<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os índios Bororo, s/d<br/> Esquerda: negativo de vidro<br/> Direita: in RONDON, 1922:117<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio<br/> <br/> LUIZ THOMAZ REIS<br/> Os Borôro, c.1916<br/> in RONDON, Índios do Brasil Vol. 1, 1946: 238 a 279<br/> Acervo Museu do Índio

Através de um conceito de primitivismo expresso por imagens de elementos culturais e do dia-a-dia, essa publicação reforça a idéia do índio como o primeiro habitante destas terras, anterior à chegada dos portugueses, forjando a imagem do indígena como parte da identidade nacional.

A imagem de uma jovem Karajá empunhando a bandeira do Brasil durante a comemoração da Proclamação da República, no segundo volume de Índios do Brasil (1953), promove a idéia de um índio civilizado e integrado. Os fotogramas que mostram Rondon discursando sobre fatos históricos da República – frente aos membros de uma aldeia vestida formalmente – fortalecem a visão do papel da Comissão como elemento ordenador e integrador dos ideais nacionalistas. O indígena passaria assim a conhecer a história da formação de sua nação e poderia finalmente se reconhecer como parte dela. Essa idéia é reforçada também no terceiro volume (1953), referente ao trabalho de Rondon no registro da ocupação das fronteiras entre o Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa. Makus, tuyucas e tukanos são retratados como os habitantes dos limites deste país e, portanto, seus legítimos vigias.

A atuação central do Major Reis foi fundamental na construção da iconografia de Rondon, resultando em um acervo fotográfico, cinematográfico e etnográfico que documenta os primórdios da política indigenista do Brasil. Conforme ressalta o fotografo e antropólogo Fernando de Tacca em sua notável pesquisa sobre a imagética da Comissão Rondon,

Reis é o olhar que elege, recorta e edita a ação, sempre com uma “câmera na mão”; Rondon é um segundo olhar, compreensivo e incentivador; olhares irmanados. Se Reis era o olhar direto da ação em campo, Rondon era o articulador da visibilidade desse olhar no âmbito nacional. […] Rondon e Reis formam um único e inseparável olhar articulado, que dá visibilidade às diferenças étnicas e de contato no Brasil daquela época, olhar este responsável por permanências sígnicas no imaginário brasileiro. (2001, p. 131)

O conjunto da obra audiovisual produzido pela Comissão é um testemunho da resposta de Rondon ao “problema do índio”, como ele mesmo se referia. Hoje, estimula-nos a avaliar as propostas de integração promovidas por Rondon e a questionar a representação dos povos indígenas em nossa sociedade, tanto em termos políticos como visuais.

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REFERÊNCIAS

LASMAR, Denise Portugal. O acervo imagético da Comissão Rondon: no Museu do Índio 1890 – 1938. 2ª ed. Rio de Janeiro: Museu do índio, 2001

RONDON, Cândido Mariano da Silva. Índios do Brasil do Centro ao Noroeste e Sul de Mato-Grosso. Volume I. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura / CNPI, 1946

________. Índios do Brasil: Cabeceiras do Xingu/Rio Araguaia e Oiapóque. Volume II. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura / CNPI, 1953

________. Índios do Brasil: Norte do Rio Amazonas. Volume III. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura / CNPI, 1953

TACCA, Fernando de. A imagética da Comissão Rondon. Campinas: Papirus, 2001

ACERVO

– Museu do Índio